José Saramago, Carta para Josefa minha Avó

José Saramago
(Portugal, 1922)

Carta para Josefa minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste, a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas, deformadas, os pés encortiçados.
Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.
Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio começava a gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua cama, lume da tua lareira, - sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de filosofia, nem de religião.

Herdas-te umas centenas de palavras práticas, m vocabulário elementar.
Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, casamentos de princesas e ao rodo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de palmo. Da fome sabes alguma coisa. Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. Como tu não vi rir ninguém. Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne  e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de sabes onde é o mundo. Chegaste ao fim da vida e o mundo é para ti o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança.
(…)
Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dezes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”. 
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Comentários

  1. :) A vida só poderá ser contemplada se dermos realmente valor a pequenas coisas, como estarmos sentados à soleira da porta a observar...
    Contemplemos o que nos rodeia, vivamos o presente!

    Saramago, magnifico como sempre!

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